Durante o tempo em que trabalhei no texto que, em menos de um mês agora, se converterá no meu novo livro, um aspecto importante que precisei definir foram as leituras dos meus personagens. Quatro Soldados começou planejado como uma história de aventuras, e no decorrer do processo, se tornou uma aventura sobre leitores - o que meus personagens liam moldava não só as relações que tinham entre si, mas o modo como reagiam ao mundo à sua volta. E, no final das contas, as leituras de cada um era um definidor de suas personalidades.
Problema número um: a história se passa no Brasil na década de 1750. O que se lia naquela época? Resposta:um grande agradecimento meu à um projeto de pesquisa da UNICAMP e da FAPESP entitulado Caminhos do Romance, e em especial artigos escritos pela professora Márcia Abreu sobre o tema (como esse aqui).
O fato é que, até meados de 1760, a remessa de livros ao Brasil (não eram permitidas gráficas na Colônia) era supervisionada pela Inquisição. Até o momento em que, para tirar o controle da Igreja sobre os livros, o Marquês do Pombal criou a Real Mesa Censória, que se encarregava, entre outras coisas, de autorizar a impressão e tradução de livros, e e remessa dos mesmos às colônias. E os documentos com esses pedidos, descobri através da pesquisa da profa. Abreu, existem até hoje no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal.
Isso me possibilitou determinar, ao menos, que tipo de leituras poderiam chegar às mãos dos meus personagens, acrescentando-se uma certa dose de liberdades (as quais falarei num post seguinte).
Best-sellers
Títulos mais solicitados em requisições destinadas ao Rio de Janeiro, conservadas nos fundos da Real Mesa Censória e relativas ao período compreendido entre 1769 e 1807
1º (38 pedidos)
• Les Aventures de Telêmaque, de François de Salignac de la Mothe-Fênelon
2º (24 pedidos)
• Night Toughts on Life, Death and Immortality, de Edward Young
3º (22 pedidos)
• Selecta Latina Sermonis exemplaria e scriptoribus probatissimis, Pierre Chompré
4º (21 pedidos)
• Histoire de Gil Blas de Santillane (Gil Brás de Santilhana), de Alain René Le Sage
5º (19 pedidos)
• Le Voyageur François ou la connoisance de l'ancien et du noveau monde, Joseph de Laporte
6º (18 pedidos)
• Meditations and Contemplations, James Harvey
• The Paradise Lost, John Milton
7º (15 pedidos)
• Caroline de Litchfield, Baronesa Isabelle de Montolieu
• El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha, Miguel de Cervantes
• História do Imperador Carlos Magno de doze pares de França, anônimo
• Lances de Ventura acasos da desgraça e heroísmos da Virtude, D. Felix Moreno de Monroy y Ros
• Rimas, Manuel Maria Barbosa du Bocage
8º (13 pedidos)
• Viagens de Altina nas cidades mais cultas da Europa e nas principais povoações dos Balinos, povos desconhecidos de todo o mundo, Luis Caetano de Campos
9º (12 pedidos)
• Delli viaggi di Enrico Wanton alle terre incognite Australi ed al paese delle scimie, né quali si apiegano il carattere, il costumi, le scienze e la polizia di quegli straordinari abitanti, Zaccaria Seriman
• O Feliz independente do mundo e da fortuna, ou arte de viver contente em quaisquer trabalhos da vida, Padre Theodoro de Almeida.
10º (11 pedidos)
• Fábulas, Esopo
• Obras, Luis de Camões
• Rimas, João Xavier de Mattos
Traduções
Note-se que a maior parte são em língua estrangeira: 6 em francês (a Selecta Latini, apesar do titulo, era elaborada em francês), 3 em inglês, 1 em espanhol, 1 em grego e 1 em italiano, contra 6 em português (não creio que a proporção tenha mudado muito nos últimos 200 anos). Contudo, é pouco provável que os cariocas do século XVIII fossem poliglotas, já que Abreu lembra que muitos dos títulos estrangeiros solicitados já possuiam traduções ao português. No caso do Aventuras de Telêmaco, até mais de uma, incluindo a edição em que o tradutor achou que faltava o personagem se casar no final, e ele próprio compôs um novo desfecho para a obra.
Tiragem
Mesmo que se considere que cada pedido inclui uma quantidade indefinida de livros (a maioria dos pedidos eram feitos por livreiros), parecem poucos. Contudo, deve-se levar em conta os números da época: um best-seller incontestável como A Nova Heloísa, de Rousseau, teve uma tiragem recorde de 4000 exemplares. O normal, para um livro bem sucedido, era ter uma tiragem média de 1000 exemplares. Quando foi publicado, em 1769, O Uraguay, de Basília da Gama, segundo dados citados na pesquisa da profa. Abreu, teve uma tiragem considerada enorme, de 1036 exemplares.
4 comentários:
Parabéns pela pesquisa, Samir. Uma dos trabalhos do escritor sério é o escafandrismo.
Nossa, interessante, agora estou na expectativa pelo seu livro hehe.
Você conhece os livros da lista, já leu, ou teve que ir atrás e se inteirar para usa-los no livro?
abraço.
Oi Diogo,
Dessa lista eu já li Gil Blás de Santilhana e Dom Quixote. Li algumas partes de Viagens de Altina, conheço algumas das fábulas de Esopo e conheço a respeito do Aventuras de Telêmaco (um best-seller do séc. XVIII). Muitos desses livros praticamente não são editados mais faz muito tempo.
Legal!
Também pela tiragem deles deve ser quase impossível conseguir um, além da conservação e linguagem mais antiga, deve ser bem complicado.
Por sorte alguns ainda conseguem chegar até nós.
No aguardo pelo livro novo então. achei bem interessante o Professor de Botânica.
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