quarta-feira, 24 de julho de 2013

A tipografia nacional original


Um pequeno detalhe extra-literário, mas de importância estética crucial no meu livro - e que, creio, seja de interesse histórico para quem se interessa por tipografia - é que a fonte em que ele foi composto tem uma história muito bacana.

Frontispício do Relação de Entrada
Começamos do princípio. Em 1747, o impressor português Antônio Isidoro da Fonseca chegou ao Brasil por motivos obscuros (fugindo da Inquisição, dívidas, punição por crimes menores, entre muitas possibilidades). O certo é que por vantagens financeiras, certamente não foi (e não mudou muita coisa nos ultimos dois séculos e meio). A existência de uma oficina tipográfica era proibida no Brasil, o que não impediu Fonseca de criar uma oficina tipográfica no Rio de Janeiro, de onde saíram comprovadamente três obras. O primeiro foi A Relação da entrada que fez o Excelentíssimo e Reverendíssimo Bispo D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro, Bispo do Rio de Janeiro […] (o título é enorme, à moda das obras setecentistas). Literariamente, a importância do impresso é nula. Mas o fato é que foi, até que se prove o contrário, o primeiro livro publicado no Brasil, mais de meio século antes da vinda da família real e do estabelecimento da imprensa régia.

Pule-se duzentos e cinquenta anos no tempo. O projeto Brasiliana USP conta com um pequeno grupo de trabalho entitulado "Resgates Tipográficos", que se dedica à recuperação de fontes tipográficas utilizadas em livros históricos e sua adaptação para uso nos computadores modernos. Dentro desse projeto, a arquiteta Laura Benseñor Lotuffo desenvolveu uma família de fontes tipográficas digitais inspirada na “Relação da entrada [...]” e nos tipos empregados por Isidoro da Fonseca, sob orientação da Professora Dra. Priscila Lenas Farias. A família chama-se, apropriadamete, "Isidora".

Segundo a própria Laura Lotuffo, em entrevista para o site do Brasiliana, "o caráter aparentemente improvisado e pouco refinado do impresso, despertaram um interesse investigativo sobre a produção da obra e a história do próprio Isidoro da Fonseca".

Esse improviso é visível ao longo de todo o livro. No entanto, alguns aspectos tipográficos se destacam; particularmente, o ‘til’ sobre o ‘O’ de ‘RELAÇAÕ’ que é, na realidade, um ‘J’ em corpo menor girado em 90 graus, e o cedilha deslocado abaixo de ‘C’, que se assemelha a um ‘s’ com a parte superior cortada. Esses elementos improvisados, assim como o aspecto geral do material impresso, traduzem ‘tipograficamente’ as circunstâncias nas quais foi impresso, de maneira clandestina, às pressas, numa oficina recém aberta e, provavelmente, cujo funcionamento ainda ocorria com um certo grau de improviso. Espero que o desenvolvimento da família ‘Isidora’, – o processo e não só o resultado final – tenha contribuído no sentido de resgatar esse ‘espírito’ que existiu no passado editorial brasileiro.

Com a publicação de Quatro Soldados, a fonte Isidora estará sendo aplicada pela primeira vez num livro de ficção.

Um artigo detalhado sobre Antonio Isidoro da Fonseca e o Relação de Entrada, de autoria da própria Laura Lotuffo, pode ser lido aqui.

Uma entrevista com Laura Lotufo sobre a criação da fonte Isidora, pode ser lida aqui.

"Relação de entrada que fez o excellentíssimo, e reverendíssimo sr. D. F. Antonio do Desterro Malheyros, bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste prezente ano de 1747, havendo sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola, donde por nomiação de Sua Magestade, e Bulla Pontifícia, foy promovido para esta Diocesi" pode ser lido aqui.

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